segunda-feira, 22 de outubro de 2018
Já próximo dos Anjos
terça-feira, 31 de maio de 2016
António Ferra Guiné
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12019: Notas de leitura (518): "Crónica dos Novos Feitos da Guiné", por António Ferra (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Este livro é uma agradável surpresa, nele se cruzam culturas e sobretudo é dado em cores muito vivas todo o processo tumultuoso da Guiné em 1991, por ali desfilam portugueses e guineenses, carros avariados, negócios corruptos de peças de automóveis, o Oliveira e o Tomazinho Batota ciranda-se pelo 24 de Setembro, o Sheraton, a Pensão da Dona Berta e o mercado de Bandim.
Parece um livro de apontamentos e a observação mordaz do autor não esconde o seu olhar de antropólogo.
Temos ali a Bissau febril dos expedientes e de gente que quer viajar, sobretudo para Portugal. Não se esconde que é um país em roda livre, sufocado numa miríade de especulações.
De leitura obrigatória para aprofundar a vida daqueles tempos, vistos por um cooperante.
Um abraço do
Mário
Apontamentos curiosos de um cooperante na Guiné, em 1991
Beja Santos
“Crónica dos novos feitos da Guiné” por António Ferra, Europress, 1995, é no mínimo uma obra de consulta obrigatória para se conhecer os sentimentos de um cooperante numa Guiné a passar do partido único para o multipartidarismo. António Ferra é licenciado em filologia germânica e professor do ensino secundário. No seu currículo refere experiências literárias com grande ligação ao teatro infantil e também na área da pedagogia e animação.
O seu livro é escrito como um caderno de apontamentos e os respetivos capítulos têm o sentido de uma crónica, começam assim: em que se fala, de como se pode viajar, em que se mostra, em que se conta, de como os cooperantes vieram para cooperar… regista cheiros, quadros de azáfama, sente-se atraído por mistérios, como o poilão, que ele assim descreve: “O poilão é uma árvore centenária de grande porte, irregular e grossa, sobretudo na base, onde pode atingir dois metros de diâmetro. As raízes começam então a engrossar e, salientes como as veias das mãos de um velho gigantesco, enterram-se no solo, afirmando um suporte sólido e a emanação da força da terra, à maneira de cordame robusto a prender o navio aos pilares do cais. O sagrado e o segredo do poilão parece concentrar-se nessa magia de se ligar tão solidamente à terra e tornear-se pelos ramos, caprichosamente, até ao céu”.
Está atento ao bulício do porto do Pindjiquiti, vai zarpar um barco para a ilhar Bubaque, dá-nos uma água-forte vigorosa e introduz-se uma figura transversal a todos estes relatos, o Oliveira: “Este homem, mais acastanhado, tinha grandes empreendimentos em mão, todo o tipo de construções, e trabalhava para grandes empresas como intermediário de mão-de-obra. O que se tornava nele original era o não trabalhar, o saber negociar e intermediar de uma maneira que o dinheiro em divisas ou em pesos lhe vinha parar às mãos, através das relações que mantinha com os poderes políticos locais e do momento. Com a chamada abertura à liberalização económica, Oliveira estava a realizar o seu sonho, que já fora do pai, agora exilado pelo Governo e partido oficial, vai para alguns anos”. Ficamos a saber que há viaturas avariadas lá para a embaixada portuguesa, o que transtorna muitas vezes já que o jipe é nação portuguesa cooperante na Guiné-Bissau. Ficamos a saber um pouco mais sobre Maurícia, a companheira do Oliveira, a zeladora da casa, somos introduzidos em ambientes de cooperantes e assistimos ao desabar do Oliveira.
É então que percebemos que Oliveira ocupa um lugar charneira entre a colónia e o país independente, teve sucesso nos amores e nos negócios e depois foi levado ao desastre quando se lançou na construção do chamado bairro dos cooperantes portugueses, que foi levantado um pouco acima do Sheraton. “Receberam o dinheiro e não terminaram a construção, está quase pronta, faltando apenas o quase, de há três anos para cá. Lá por dentro tudo já está mudado, porque, com os assaltos, lá vão desaparecendo as torneiras, os autoclismos e o material elétrico que chegou a ser instalado parcialmente. Claro que Oliveira, por seu lado, gastava tudo com o grupo dos acólitos, pagando rodadas na Tropicana e noutras boates que apareceram então em Bissau”. Despromovido, vive agora na tabanca, sobrou uma pequena destilaria mas em pouco tempo deixou de ter posses para pagar aos cortadores de cana, teve que regressar às origens, retomando os antigos hábitos e valores.
A descrição da “chapa” de Bissau é também muito vigorosa, como o Bandim daquele tempo, um sociodrama da Guiné, assim apresentado: “Tudo ali aparece ampliado e distinto. Do lado direito quem sobe, o passeio é estreito e depois, mais para dentro, aparece uma grande vala de cimento que vai até mais acima. Do lado interior da vala estão vendedores de plásticos – bacias, baldes, canecas – e de bacias esmaltadas da Tailândia. E logo começam, então, junto ao passeio, as mesinhas com pacotes de cigarros Marlboro e L&M, fósforos, sabão azul, muito azul, pastilhas elásticas, latinhas de leite evaporado francês a 1500 pesos”.
Descobrimos que o sonho de todo o guineense é viajar, com preferência para Portugal, essa Guiné da transição já se encontra em estado deplorável. Conta-se a história de Paulo da Silva que vive num quarto acanhado, numa zona degradada de São Bento. Nasceu em Cacheu, um tio levou-o para Bissau onde estudou no liceu Kwame NKrumah, aprendeu matemática com Vladimir, professor soviético, e a língua portuguesa com o seu tio, António Jaló Feliz. Paulo veio frequentar um curso de português em Portugal, gostou da comida, da cama limpa, decidiu não voltar à Guiné, ele e todos os outros. “Procuram outros guineenses em Lisboa. O Osvaldo, que também integra a comitiva, tinha um primo que trabalhava na construção civil e vivia ali para os lados da Pontinha. Quanto ganha ele, quanto? Tira 50 contos, o malandro, e ainda manda 5 ou 7 para a família. Quantos pesos são 5 ou 7 contos? Tantos pesos! Maldito câmbio! Porque não são iguais todas as moedas? Porquê esta diferença? Paulo da Silva ficou. Tio António: escrevo a bocê, digo que a minha fica na Lisboa num trabalho bom ca arranjou o tio de camarada Osvaldo numa obra de construssão di prédiu e tanbem pagão bem, em escudo, em peso é manga di peso e pode mandar tanbem ao tio algum, seu sobrinho sempre muito amigo da gente ai, tia e criança Abdul, Paulo da Silva”.
Como uma desgraça nunca vem só, vamos ver Oliveira acidentado, depois a sua filha Odete com febre altíssima, ele corre espavorido à procura do milagre da aspirina, não acreditava nos antibióticos nem nos hospitais, a pequenita Odete de olhos grandes morreu levada pelo impiedoso sarampo.
Muito se falará ainda de cerimónias religiosas, dos armazéns do povo que não têm praticamente nada para vender, dos apartamentos degradados da Ankar e dos usos e costumes dos cooperantes, retratos crus de sonhos e quimeras, de solidariedades e de oportunismos.
Caminhamos para o fim, Oliveira ainda pensa em refazer a vida, comprando um táxi, juntando algum dinheiro da pouca aguardente de cana que ainda vai vivendo. Mas uma fatalidade instalou-se, uma fatalidade ou uma praga que dá pelo nome de corrupção, que se espalha por todas as atividades, incluindo o da educação. Aqui e acolá, fazem-se referências ao bife da Casa Santos e à comida da Pensão da Berta, referindo-se esta por ser instituição a funcionar com o mesmo paladar, quer antes quer depois da independência e mesmo durante os períodos maus em que escasseavam os géneros, antes e depois dos fuzilamentos que o grupo do camarada Nino patrocinara em 1986.
Tecem-se críticas mordazes: o sonho de um guineense em ascensão era ser homólogo (isto é, a outra parte do trabalho do cooperante) com viatura e combustível, de preferência em projetos ricos e conta-se a história exemplar de Tomazinho Batota, um ladino aperfeiçoado em múltiplos expedientes, de óculos Ray Ban e calcinha branca, como se fosse novamente um colono português à boa maneira. E o autor despede-se, desejando sinceramente que tudo corra bem, ainda se encontra com Oliveira na praça Che Guevara e reflete como se sobe e desce tão rapidamente naquele entreposto que dá pelo de Bissau…
quarta-feira, 13 de abril de 2016
Fugindo de Todos os Fogos
terça-feira, 22 de março de 2011
Marias Pardas
(...)
7.
Amigos e filhos não tinha, apenas alguns vultos reflectidos na vodka em frente dos espelhos. A esses esvaziava-lhes a sombra lentamente.
E quando ouvia os gritos e gracejos na luz ácida dos néons, despia os farrapos do vestido, implorando um copo de vinagre que a aliviasse da cruz arrastada pelas ruas pardas de um certo bairro histórico.
domingo, 16 de janeiro de 2011
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Bio grafia
1.
O seu brinquedo favorito era um carrinho de corda que o avô lhe oferecera pelo aniversário. Um carrinho de corrida vermelho, com um piloto de olhos tapados por óculos negros e com um capacete castanho que o defendia das paredes.
Tantas vezes, ao dar corda, forçou o caracol interior de aço, que ele um dia se partiu, deixando-o desolado, à espera do milagre da reconstrução.
(...)
14.
Às seis horas, arrumava os papéis da secretária, cobria a máquina de escrever com uma capa de pergamóide e saía entre até-amanhãs, sem contabilizar as beatas num cinzeiro esmaltado.
Quando chegava à rua, olhava uns plátanos, sobranceiramente, e distraía-se no recorte das folhas – memória de uma infância arborizada.
Articulou as últimas palavras, sons incompreensíveis à espera de um muro que os significasse. Mas isso não aconteceu. A voz dissolveu-se nos campos, misturou-se com o restolho do milheiral agitado pelo vento, até cair na praia vazia, onde permanecia o rasto de redes puxadas pelos bois.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
sábado, 16 de janeiro de 2010
Reclamações
Gótica de corpete negro
Que bem que passa aquela gótica,
de negra cabeleira espevitada
na noite fria, um tanto asmática,
onde mora a madrugada!
Toda de negro e prata na cabeça,
redonda e larga a bota alta
num corpete negro de mistério
quando a altas horas se aperalta,
é falsa tristeza, é falso olhar,
é tudo uma questão a produzir
o lábio fino e roxo a falsear
a alegria reprimida de se rir.
De umbigo solto, fascinante,
por baixo da frágil sombra da olheira,
outros olhares atrai, só por instante,
o corpete da miúda que se esgueira.
Mas vem dos seus genes ancestrais
aquele corpo reflectido nos espelhos,
vem de longe um galante de T-shirt
que por vergonha não tomba de joelhos.
E alta noite, já quando regressada
de passear a solidão pela cidade,
remove a máscara, atira-se p’rá cama,
e por fim fica nua de verdade.
youtube
Um deputado recebeu um par de luvas
um ministro é suspeito numa empresa
uma porca até comeu um cacho de uvas
com um diabo num altar de vela acesa
são notícias a vender ao desbarato
logo a seguir visionadas no youtube
onde aparece uma burra sem sapato
à espera de um camelo que a ajude
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
foi o nome que dei à minha visão periférica.
À medida que me afastava do centro, surgia o amontoado de prédios sobrepostos, de casas justapostas, de luzes aprisionadas que saíam das janelas ou dos espaços por onde se conseguiam libertar.
Executei estes trabalhos sobrepondo colagens de pedaços de papel que poderiam muito bem ter sido colocados no lixo pelos habitantes daqueles mesmos prédios.
As colagens que faço obedecem a uma persistência na reciclagem, uma forma de denúncia do desperdício e da fragilidade da fronteira entre o essencial e o acessório.
Denúncia dos que foram banidos dos centros para se fixarem nas periferias, onde, afinal, acabam por estar também quase ausentes.
A raridade da figura humana nas imagens revela essa mesma ausência, ainda que, de onde em onde, se possam entrever algumas figuras ou espaços que funcionam como sonhos.
Com os banidos para a posição periférica, afastados dos centros de decisão, foi sempre assim, até ser atingido o uso da periferia como solução aparente, o que relativiza e desculpabiliza o poder central – um poder ancestral que concentrou os chefes no âmago das povoações.
Esta evocação do tempo surgiu-me no prefixo Ur, que, em alemão, significa antiguidade. Os banismos/banidos não são novos. Apenas a forma de os representar pode ser nova, enquanto desafio às novas habitações.
António Ferra - do catálogo da Exposição Ur banismos, espaço ponto e vírgula, Torres Vedras, Novembro a Dezembro de 2009
domingo, 8 de novembro de 2009
corpos série eros
domingo, 4 de outubro de 2009
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
domingo, 24 de maio de 2009
espécie de currículo
Os amigos, esses conhecem razoavelmente a minha produção plástica, ou porque vêm até ao meu espaço ver o que estou a fazer, ou porque muitos possuem obra minha.É como se eu tivesse uma exposição permanente no meu local de trabalho de portas abertas aos visitantes que vou encontrando.
Se olhar para trás, lembro-me que comecei a expor aquilo que fazia no espaço escolar que me rodeava durante o meu percurso, desde os tempos de quase adolescente, no liceu, passando por manifestações académicas em Coimbra que se alojavam no Museu Machado de Castro (memórias da minha passagem pelo velho Círculo de Artes Plásticas), até à Faculdade de Letras de Lisboa, onde estive colectiva e individualmente, e depois ainda à galeria Nova Foco agregada a uma escola no Cacém, onde fui professor. Daqui, desta proximidade geográfica, nasceu a minha ligação com a Câmara de Sintra, onde participei em exposições colectivas – em Rio de Mouro e no Turismo local - bem como uma exposição individual no (extinto!) Espaço Cultural Casal de S. Domingos: “Transparência Mínima”, em 2004, que marca uma certa viragem nos meus critérios de produção. Seguiram-se "Recortes do Tempo", na Casa da Cultura da Trofa e "Ur banismos",no "espaço ponto e vírgula", em Torres Vedras, ambas em 2009. Ficavam para trás as antigas amostras dos anos setenta, com participações, entre outras, no Estoril (nos salões da JTCS, ou as dos anos noventa, como na casa da Cultura da Ericeira e Casa de Pessoal da EDP.
Não me considero autodidacta, porque nunca aprendi sozinho. Aprendi, desde muito novo, quer em lições particulares, quer através dos contactos com os companheiros do meio circundante da Escola de Belas Artes do Porto, onde se incluía a vida de café, nesta cidade de muitos cafés onde nasci em 1947. Desde os finais dos anos sessenta que ia fazendo e vendo, vendo e fazendo de novo, experimentando e readaptando atitudes e técnicas que via utilizadas por outros. A aprendizagem da expressão plástica – e a invenção – situou-se exactamente ao mesmo nível da expressão escrita: para encontrar o meu próprio caminho, vejo o que os outros fazem, leio o que os outros escrevem.
Sinto-me mais livre a desenhar do que a escrever, para mim as imagens são anteriores às palavras.
Da exposição RECORTES DO TEMPO - reciclagem do objecto artístico - na casa da Cultura da Trofa (Junho de 2009)
Os recortes foram feitos recentemente, em 2004. Mas a base de onde os recortei foi executada em 1970. Era uma placa de cartão de cinquenta por setenta centímetros onde eu jogava com os efeitos de atracção e repulsa entre a tinta de água e a tinta de esmalte.
Posteriormente, a partir de 2007, fui introduzindo dentro das caixas alguns raminhos ou pedras que encontrei. Achei isso se articulava com a atitude de recolha e aproveitamento de resíduos.
Ao longo dos anos, fui reduzindo a dimensão dos meus trabalhos de expressão plástica até criar ambientes intimistas que ocupam menos espaço. É o que eu pretendo com estas caixas que abrigam visões e memórias de montanhas ou sugestões marítimas.
A partir de uma expressão gestual feita naquela placa de cartão, há muitos anos, fui tentando uma figuração mais racionalizada e menos impetuosa, conjugando também estes contrários, tal como acontecera com os materiais – tinta de água e a tinta de óleo.
Creio que tudo isto aconteceu em resultado da experimentação e da paciência para esperar pela altura mais conveniente para intervir sobre aquilo que tinha feito – um trajecto de mais de trinta anos que vai refazer a produção de determinada época.
O objecto criativo não se prende apenas ao momento de execução. Há toda uma transformação feita através do tempo, à custa da transformação e mudança do olhar (diacronia). Do mesmo modo que a plurisignificação surge a partir da diversificação dos olhares no mesmo recorte de tempo (sincronia).
O trabalho apresentado é o resultado de um trajecto pessoal feito em interacção com os outros, ou seja, as pessoas, as mudanças culturais e tecnológicas e as manifestações artísticas que tenho encontrado.
Estes elementos, agora num contexto novo, integram a expressão desta (a)mostra, que, simultaneamente assume e reelabora o passado.
Esta abordagem é, pois, diferente daquela que se centra na estabilidade do objecto.
Talvez mais tarde estes recortes do tempo tenham ainda outra expressão: as caixas com os recortes podem ser fixadas e ligadas entre si, constituindo um objecto único, representando uma unidade que congregue a fragmentação. Mesmo que a quantidade dos objectos diminua em virtude de aquisições por parte daqueles que queiram participar na obra, através da posse individual dos fragmentos de tempo – os recortes.
Pretendo uma maior interacção com os receptores, com quem partilho preocupações de ordem ecológica, enviando a mensagem de que é possível a reciclagem de objectos de outro tempo, que acabaram por ser excluídos.
Mesmo os objectos artísticos.
Esta atitude não entra em conflito com a perenidade da arte. Pelo contrário, complementa-a e dá-lhe significado, enquanto diferente.
Como se pode ver, há um percurso que vai desde a densidade dos materiais que preenchem cada fragmento, até uma raridade progressiva contida nesses quadrados de dez centímetros. Isso resulta da escassez da matéria-prima utilizada – irrepetível – que teve de ser dividida pelos vários fragmentos.
Este procedimento aponta para uma depuração até se atingir a síntese simbólica do espaço quase em branco representado nos últimos elementos desta sequência através de caixas mais rarefeitas, relativizando o objecto estético, aparentemente gratuito, que existe em cada recorte do tempo.
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
estação suspensa
Lá em baixo um cigarro brilha o lume e a fome, quando uma cortina se agita neste princípio do Verão, a almofada ainda quente das palavras nascidas da rouquidão de um gesto lasso. É na intimidade que se morre, antes que o álcool se extinga e não restem mais cigarros sem sabor, só aqueles a que o fim da noite obriga na brusca mudança de estações.
9. entre contentores de lixo
Às vezes, quando estou a tentar dormir, ouço uns rumores imperceptíveis misturadas com a noite de todos os gemidos. Há muita gente que anda assim, gente que circula entre contentores do lixo, à espera da reciclagem das almas, num exercício pragmático da fome.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Natália, correia
tem como fim cristalino
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado»
in Diário de Lisboa, abril de 1982
De “O Fidalgo Aprendiz”
Saie Alfonso Mendez, vestido à portuguesa antiga; botas brabas, festo, pelote, gorra, espada em talabarte
Sou velho, já fui mancebo,
Cousa que, mal que lhes pês,
Virá por vossas merecês.
Naci no Lagar do Sebo,
Faz hoje setenta e três.
Fui prezado, fui temido,
Passei sóis, passei serenos,
Rompi bons vintadozenos
Já nunca mudei vestido,
E inda fato mudei menos.
Sei o açougue no Recio,
Os Estaus da Inquisição.
Vi el- Rei Dom Sebastião.
Sem dinheiro, quis ter brio:
fiquei perpetuo rascão.
Hoje sirvo, não sei donde,
lá de riba, um escudeiro,
enfronhado em cavaleiro
que, de andar posto em ser conde
se não conde é condandeiro
de Junqueiro
E nessa escuridão gomórrica e confusa
Minha porra encontrou atascados em merda,
Chagas, Mendes Leal e o César de Lacerda.
Volvidos dias três, três sois volvidos, eu,
Com a alma mais triste e negra do que o breu,
Procurei um doutor, um dos grandes portentos
Que fazem dos bubões e dos esquentmentos
Modo de vida e disse ao meu doutor: Doutor,
Eis aqui este gancho, eis aqui esta dor
Que desgraça, doutor! Veja você – um Cristo!...
E esta porra. Acordei hoje com tudo isto,
Observe-me esta porra, ó conspícuo alveitar:
Vê esta purgação? – São os «Homens do Mar».
Cinismo, Cepticismo e Crença», em Alviela
Correm aqui. Maldita, ó! Maldita a panela
De Talia, onde encontrei este gálico novo,
Feito da «Probidade» e do «Drama do Povo»...
E o profundo doutor retorquiu desta sorte:
- Talia tem no cu Chagas, isto é, a morte;
Tem Lacerda – o flagelo! – e tem Mendes Leal!
Uma combinação da «Escola Social»
E Judia produz este gálico raro
Que se arranja no Pindo e que se cura em Faro.
..........................................................................
Gonçalves exprimiu assim seu pensamento
E eu disse-lhe: - Você, Gonçalves, tenha tento
Na bola e não me foda as Musas de tal guisa
As musas mortais fodem-se com camisa
De Vénus. Pois você, ó Gonçalves dos diabos
De rabo alçado enraba assim os nove rabos
Dessas Musas, e quer você, ainda por cima
Ter talento e saúde... Um homem, quando arrima
Uma trombicadela, é preciso levar
Um antídoto bom contra os «Homens do Mar»...
De As Musas
o tempo e a sátira
in Prefácio “Obras Completas de Nicolau Tolentino”
terça-feira, 15 de abril de 2008
de Sá de Miranda
(...)
Não me temo de Castela,
donde inda guerra Não soa;
Mas temo-me de Lisboa,
que ao cheiro desta canela
o Reino nos despovoa.
(...)
Ouves, Viriato, o estrago
que cá vai os teus costumes?
Os leitos , mesas e os lumes,
todo cheira: eu trago óleos;
vem outros, trazem perfumes.
Sátiras de Camões
Já eu vi a taberneiro
vender vaca por carneiro;
mas não vi por vida minha
vender vaca por galinha
senão ao duque de Aveiro.
Esparsa a um fidalgo na Índia que lhe tardava com ua camisa galante, que lhe prometeu.
Quem no mundo quiser ser
havido por singular,
para mais se engrandecer,
há-de trazer sempre o dar
nas ancas do prometer.
E já que vossa mercê
largueza tem por divisa,
como todo mundo vê,
há mister que tanto dê
que venha dar a camisa
De Gil Vicente
Es tu moça ou bacharel?
Nam deprendeste tu assi
O verbo d’ aninma Christie
Que tantas vezes ouviste
Isabel : Isso nam he para mi.
Velha : e pois quê?
Isabel: Eu vo-lo direi
Ir a miude ao espelho
e poer do branco e vermelho,
e outras cousas que eu sei:
pentear curar de mi
e poer a ceja em dereito;
e morder por meu proveito
estes beicinhos assi,
Ensinar-me a passear,
pera quando for casada
nam digam que foi criada
em cima de algum tear,
Saber sentir um recado,
e responder emproviso
e saber fingir um riso
falso e bem dissimulado.
Velha: E o lavrar, Isabel?
Isabel: Faz a moça mui mal feita,
corcovada, contrafeita (...)
excerto de "Quem Tem Farelos?"
De “O Fidalgo Aprendiz”
Saie Alfonso Mendez, vestido à portuguesa antiga; botas brabas, festo, pelote, gorra, espada em talabarte.
Sou velho, já fui mancebo,
Cousa que, mal que lhes pês,
Virá por vossas merecês.
Naci no Lagar do Sebo,
Faz hoje setenta e três.
Fui prezado, fui temido,
Passei sóis, passei serenos,
Rompi bons vitadozenos
Já nunca mudei vestido,
E inda fato mudei menos.
Sei o açougue no Recio,
Os Estaus da Inquisição.
Vi el- Rei Dom Sebastião.
Sem dinheiro, quis ter brio:
fiquei perpetuo rascão.
Hoje sirvo, não sei donde,
lá de riba, um escudeiro,
enfronhado em cavaleiro
que, de andar posto em ser conde
se não conde é condandeiro
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Prólogo do Cancioneiro Geral
do cancioneiro de Garcia de Resende
senam minha fazendinha;
rei nem roque nem rainha
nam queria nunca ver.
O pagar das moradias
é o que mais contenta,
o despachar da ementa,
as madrugadas tam frias;
trabalhar noites e dias
por ser na corte cabidos,
e, os tempos despendidos,
ficar com as mãos vazias.
Armadas idas d'além
já sabeis como se fazem:
quantos cativos lá jazem,
quantos lá vão que nam vêm!
E quantos esse mar tem
somidos que não parecem,
e quam cedo cá esquecem,
sem lembrarem a ninguém!
E alguns que sam tornados,
livres destas borriscadas,
se os is ver às pousadas,
achai-los esfarrapados,
pobres e necessitados
por mui diversas maneiras
por casas das regateirasos
vestidos apenhados.
Por isto, senhor Mafoma,
tresmontei cá nesta Beira,
por tomar a derradeiravida,
que todo o homem toma;
porque há lá tanta soma
de males e de paixam
que, por não ser cortesão,
fugirei daqui té Roma.
Fim
Agora julgai vós lá
se fiz mal nisto que faço:
em me tirar desse Paço
e mudar-me para cá;
pois é certo que, se dá
algum pouco galardam,
lança mais em perdiçam
do que nunca ganhará.
João Roiz de Castel-Branco, Cancioneiro Geral, III, 120-124
cantiga de escárnio
De João Garcia de Ghilhade
Ai, dona fea, fostes-vos queixar,
[que] vos nunca louv’ en meu trobar;
mais ora quero fazer um cantar,
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Ai, dona fea, se Deus mi perdon,
E pois avedes tam gra coraçon
que vos eu lôe, em esta razon
vos quero ja loar toda via;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja um bom cantrar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
(C. V. 1097; C B N., 1399)
sábado, 26 de janeiro de 2008
nos restos da cidade
desabitada que foi pelas parcelas de rio
e charcos da tempestade,
apenas na luz distante os barcos flutuam
encontro na noite o interior
das vozes que se calam ao meio-dia claro
na noite de lisboa as paredes tremem,
ainda que sejam cobertas de portas e de vidros
quando o sangue inesperado me corre pelo rosto
ninguém me falou na transparência dos vidros
e o cimento é demasiado opaco para que
os sinais se transformem nas ruas empedradas
onde as almas são intocáveis
e as raízes vão manietando
o meu corpo aberto sobre um sonho
onde passa um jardim
de costas para o estuário
escolho as palavras que gritam a cidade
e no mesmo movimento deixo que a água
me amoleça e trespasse
e a luz intermitente me adormeça o cansaço
só a ilusão de uma sombra cinzenta
resiste ao mar que me levou e me trouxe
morre de saudade este mar
incutiram-lha os de torna-viagem,
nada já reside nos outros, só em mim paira
o desmaio num sorriso acorrentado
aos olhos, procurando o novo mundo
como se fosse possível navegar ainda mais
in Com a Cidade no Corpo (edição da CML)
sexta-feira, 25 de janeiro de 2008
O vermelho e o Negro
10. clara:
«rio de mouro, vinte e dois de Outubro». Agora vou datar tudo. É necessário que assim seja. No tempo do gustavo era diferente. Agora não. Vou sair para o bar e ver se é saudável o rebanho guardado por mastins de três cabeças.
O bar situava-se no ventre de um bicho gigantesco. Era um rinoceronte com um enormíssimo corno no meio, como todos os rinocerontes, só que este entoava melodias em desuso, roncos imprecisos, enquanto galopava cego pela noite dentro e aparecia reflectido numa bola multifacetada de espelhinhos pendente do tecto.
Um homenzinho, baixinho e peludinho, sentou-se juntinho de si e pediu dois uisquezinhos. Sorveram-nos, passearam-nos pelas gargantas, e ele perguntou-lhe das suas fantasias.
- Não tenho fantasias, respondeu clara.
- Pois eu tenho-as. Gosto de me segurar num candeeiro como se fosse um trapézio e aí, sim, rodopiar toda a noite.
- Ah, isso é mais caro, muito caro mesmo, nada menos do que seiscentas mil dolzas. O homem pareceu agradado, já não via nada senão aquelas brancuras de carne e fixara-se a si próprio na imagem do candeeiro, viajando pelo sexo em círculos reflectidos num espelho existente no soalho.
de O Vermelho e o Negro
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
Silêncios Comprados
Histórias e Teatrada Com Alguma Bicharada
A Casa- Mãe
quarta-feira, 9 de janeiro de 2008
Pedagogia Centrada na Pessoa
Nas entranhas do tempo / há uma roda dentada
Diferente consciência do facto poético, ou tão-só inquietação existencial decorrente da crise (e esgotamento) do homem, ao ponto de tornar a palavra «facto de consciência», como lhe chama George Steiner, talvez nunca tanto se tenha esperado da palavra poética, talvez nunca tanto se tenha esperado que a palavra poética assumisse o seu papel de antídoto contra «rotinas inertes» que impedem o homem de viver a poesia e o destino humano de vir a ser horizonte de esperança. Efeito da intolerância política, da intolerância religiosa, ou da falta de saber, da falta de conhecimento que corrompe aquela reserva de humanidade que responde pela condição do homem consigo mesmo? Tudo isso e muito mais, sobretudo quando a cultura vivida se torna incapaz de obstar à estética da violência que aflige as sociedades desenvolvidas.
texto de apresentação de Baptista- Bastos
A única e, afinal, muito pouca coisa, que me recomenda para falar de «A Palavra Passe» é porque sou um velho, constante e permanentemente surpreendido leitor de poesia. De tal forma a poesia se me torna indispensável que tenho por hábito ler, em voz alta, aqueles dos meus favoritos. António Ferra passou a fazer parte desses Dilectos, daqueles que, através das imagens que as palavras propiciam, tornam visível o invisível, e emocionante o que é impossível revelar por outros meios.
Estamos em presença da grande poesia, incluída na lógica da grande arte: a que exprime uma pessoal forma de verdade e um particular modo de ver e de dizer. E, também, aquela que dá notícias: dos dias cinzentos, do azebre da rotina, do espanto moroso, da cama desfeita, das esparsas pilhas de pequenas palavras, do entardecer, do excesso, da senhora de cabelos caídos. Eis a enternecedora lírica das ruas, por onde perpassam os outonos tristes e ocres, as convalescências da solidão, as primaveras frescas e verdes - e esse local de infância e de assombro que acaba logo ali.
António Ferra conta-nos a viagem móvel das cores longínquas de uma cidade, cuja severa opulência oculta uma humanidade obscura. Vejo-o muito próximo do Cesário, que nos falou de uma peculiar soturnidade, e onde o homem moderno, como objecto de interrogação, não perdeu o sentido da sua específica importância. O poeta dá-nos a palavra passe para o labirinto através do qual se manifesta a luta, por vezes exacerbada, entre o corpo e o espírito, a fé no amor que não precisa de argumentos e a violência de uma sociedade incapaz de tolerância e mais propensa aos sermões - como se infere desse surpreendente poema, «Chá e Lixo», que me parece ser o manifesto de uma dor suprema, com ergueres e recaídas, nunca com renúncias.
Um itinerário de vida, uma outra relação com o tempo, e um jogo de metáforas sobre a época tão trágica quanto ilusória que nos coube viver. Há, nestes poemas, que podem ser entendidos como uma ode degolada e inquietante, a consciência de que, apesar da derrota e da morte, temos de alimentar a teimosia da esperança. Assistimos, hoje, a uma alteração das paixões, e a uma anulação crescente dos paradigmas. Mas também presenciamos o reviver do princípio de que o homem é um ser de linguagem, e que, através dela, se procura uma outra identificação com o nosso tempo. Aí, a poesia tem uma decisiva palavra a dizer; como, aliás, sempre teve.
António Ferra diz-nos que todos nós vivemos no interior de todas as ausências, no mistério dos dias, e que nada é muito claro no crescer das vidas. Fornece-nos notícias de si mesmo. Com recato, com pudor e comovida discrição. Na incoerência dos dias só existe a coerência maravilhosa da poesia: a mecânica da alma a opor-se, tenazmente, às peripécias que nos agridem, em nome de um falacioso futuro. E, entretanto, há as bombas, as matanças que tentam aniquilar «o corpo ainda sensível à memória», como o poeta no-lo diz. E há, igualmente, esse bicho-de-conta que nos murmura:
Não há pressa, tenho o tempo todo para correr na praia, / o tempo de abrir o motor e o porão cheio de remadores extenuados / onde alguém provocou um curto-circuito na noite ameaçada / por uma instalação mal feita (... )
É um belíssimo pequeno livro. Se me permitem, aplico à arte de António Ferra o juízo de Rostropovitch sobre a «Sonata Arpeggione», de Shubert: «Foi escrita em lá menor e dura dez minutos. O que não quer dizer que seja uma obra menor. Nem curta. Pelo contrário». Este pequeno livro maior convida-nos a percorrer a intimidade dos grandes silêncios, nos quais reside a intensa obsessão da vida.
Texto lido na Livraria Bulhosa, numa terça- feira, 12 de Dezembro, 2006, na apresentação do livro de poemas «A Palavra-Passe» de António Ferra.