quarta-feira, 9 de janeiro de 2008


















Prefácio de Vergílio Alberto Vieira
Tudo acontece como se

Nas entranhas do tempo / há uma roda dentada
Iosif Brodskii, Paisagem Com Inundação

Diferente consciência do facto poético, ou tão-só inquietação existencial decorrente da crise (e esgotamento) do homem, ao ponto de tornar a palavra «facto de consciência», como lhe chama George Steiner, talvez nunca tanto se tenha esperado da palavra poética, talvez nunca tanto se tenha esperado que a palavra poética assumisse o seu papel de antídoto contra «rotinas inertes» que impedem o homem de viver a poesia e o destino humano de vir a ser horizonte de esperança. Efeito da intolerância política, da intolerância religiosa, ou da falta de saber, da falta de conhecimento que corrompe aquela reserva de humanidade que responde pela condição do homem consigo mesmo? Tudo isso e muito mais, sobretudo quando a cultura vivida se torna incapaz de obstar à estética da violência que aflige as sociedades desenvolvidas.
Tentado a questionar-se sobre a necessidade de saber que tempo, afinal, vivemos, nós, quis António Ferra fazer do seu discurso, não um efeito de estilo, mas um processo de comunicação poética concretamente dirigido à consciência de si, que o mesmo é dizer: à consciência do tempo que somos: «(...) tudo isso está perdido dentro de mim», entenda-se: « (...) mas com uma nostalgia tramada (...)» ( in «perdi a password» ). O que releva, porém, de uma estética que conhece o risco de poder inflectir para lugares da escrita redutores do impulso criador: «olhem para mim de poema panfletário na ponta das teclas» - variante da «maldição» que o juízo crítico se encarregou de situar no quadro das manifestações artísticas do século transacto (Surrealismo, Vanguardas, etc.) – é antes a conquista de um espaço literário marcado pela possibilidade da poesia, enquanto princípio unificador da totalidade do homem (e da sua historicidade): « (...) é preciso calafetar a alma», escreve o poeta: « (...) como se estivesse o mundo global em gestação dentro de mim» (in «fazia o favor de me» ). Isto, apesar de ter conhecimento de que, na vida, já lhe é exigido: «(...) muito, muito mais do que o necessário» e que na «europinha», das sociedades satisfeitas, insiste Steiner, ainda pesa: «(...) a porra do pecado original». Não é fácil continuar a ser «politicamente incorrecto» e tornar o poeta (leia-se: o ente histórico) voz de eleição, sem querer: «(...) pôr fim à porcaria dos poemas encharcados de quotidiano / até cheirar mal», como diz o poema «canalização», nomeadamente quando verbalizar a vida diária em tempo de fuga é tarefa de Sísifo para o poeta, a braços com uma experiência humana exausta.
Assim sendo, registe-se em que medida esta poesia – herdeira a seu modo do inconformismo que levara a Beat Generation a romper com todos e contra todos, primeiro, para tudo e todos aceitar, mais tarde – tende a expor a sua rebeldia. «(...) quero respirar, quero escrever o que me vem à cabeça / com todos os sentidos, depois logo se vê.» sem, no entanto, se prender à maldição baudelairiana (ou pós-baudelairiana) e abdicar do dispositivo retórico que a aproxima de um sentido espiritual, sentimental e poético próprios: «E depois há ainda o tempo todo/para servir a alma de um bicho de conta enrolado sobre si» (in «bicho de conta» ). Uma última anotação para as rupturas discursivas operadas, não apenas conjunturalmente, mas verso a verso, uma vez que os mecanismos formais e imagética accionados se transformam, a breve trecho, na marca distintiva (marca de artista) mais obsessivamente reiterada em A Palavra Passe. Trata-se, com efeito, daquilo a que George Steiner, em Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem, denomina «condição de uso linguístico, lexical e sintáctico», e da qual depende, em última análise, a percepção ontológica desta poética, com frontalidade jogada à consciência colectiva daquele «sereno desespero» thoreauniano que há-de continuar a fazer-nos «progredir no declínio», ou fazer do presente, como assinalou Raoul Vaneigem, um verbo «conjugado no passado» .

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A LÍRICA DAS RUAS EM ANTÓNIO FERRA

texto de apresentação de Baptista- Bastos


A única e, afinal, muito pouca coisa, que me recomenda para falar de «A Palavra Passe» é porque sou um velho, constante e permanentemente surpreendido leitor de poesia. De tal forma a poesia se me torna indispensável que tenho por hábito ler, em voz alta, aqueles dos meus favoritos. António Ferra passou a fazer parte desses Dilectos, daqueles que, através das imagens que as palavras propiciam, tornam visível o invisível, e emocionante o que é impossível revelar por outros meios.
Estamos em presença da grande poesia, incluída na lógica da grande arte: a que exprime uma pessoal forma de verdade e um particular modo de ver e de dizer. E, também, aquela que dá notícias: dos dias cinzentos, do azebre da rotina, do espanto moroso, da cama desfeita, das esparsas pilhas de pequenas palavras, do entardecer, do excesso, da senhora de cabelos caídos. Eis a enternecedora lírica das ruas, por onde perpassam os outonos tristes e ocres, as convalescências da solidão, as primaveras frescas e verdes - e esse local de infância e de assombro que acaba logo ali.
António Ferra conta-nos a viagem móvel das cores longínquas de uma cidade, cuja severa opulência oculta uma humanidade obscura. Vejo-o muito próximo do Cesário, que nos falou de uma peculiar soturnidade, e onde o homem moderno, como objecto de interrogação, não perdeu o sentido da sua específica importância. O poeta dá-nos a palavra passe para o labirinto através do qual se manifesta a luta, por vezes exacerbada, entre o corpo e o espírito, a fé no amor que não precisa de argumentos e a violência de uma sociedade incapaz de tolerância e mais propensa aos sermões - como se infere desse surpreendente poema, «Chá e Lixo», que me parece ser o manifesto de uma dor suprema, com ergueres e recaídas, nunca com renúncias.
Um itinerário de vida, uma outra relação com o tempo, e um jogo de metáforas sobre a época tão trágica quanto ilusória que nos coube viver. Há, nestes poemas, que podem ser entendidos como uma ode degolada e inquietante, a consciência de que, apesar da derrota e da morte, temos de alimentar a teimosia da esperança. Assistimos, hoje, a uma alteração das paixões, e a uma anulação crescente dos paradigmas. Mas também presenciamos o reviver do princípio de que o homem é um ser de linguagem, e que, através dela, se procura uma outra identificação com o nosso tempo. Aí, a poesia tem uma decisiva palavra a dizer; como, aliás, sempre teve.
António Ferra diz-nos que todos nós vivemos no interior de todas as ausências, no mistério dos dias, e que nada é muito claro no crescer das vidas. Fornece-­nos notícias de si mesmo. Com recato, com pudor e comovida discrição. Na incoerência dos dias só existe a coerência maravilhosa da poesia: a mecânica da alma a opor-se, tenazmente, às peripécias que nos agridem, em nome de um falacioso futuro. E, entretanto, há as bombas, as matanças que tentam aniquilar «o corpo ainda sensível à memória», como o poeta no-lo diz. E há, igualmente, esse bicho-de-conta que nos murmura:

Não há pressa, tenho o tempo todo para correr na praia, / o tempo de abrir o motor e o porão cheio de remadores extenuados / onde alguém provocou um curto-circuito na noite ameaçada / por uma instalação mal feita (... )
É um belíssimo pequeno livro. Se me permitem, aplico à arte de António Ferra o juízo de Rostropovitch sobre a «Sonata Arpeggione», de Shubert: «Foi escrita em lá menor e dura dez minutos. O que não quer dizer que seja uma obra menor. Nem curta. Pelo contrário». Este pequeno livro maior convida-nos a percorrer a intimidade dos grandes silêncios, nos quais reside a intensa obsessão da vida.


Texto lido na Livraria Bulhosa, numa terça- feira, 12 de Dezembro, 2006, na apresentação do livro de poemas «A Palavra-Passe» de António Ferra.